Em 9 de julho de 1932, o estado de São Paulo se levantou em armas contra o governo de Getúlio Vargas. Foi o maior conflito interno do Brasil no século XX — uma guerra civil moderna que durou quase três meses, mobilizou centenas de milhares de pessoas, testou a indústria paulista e deixou marcas profundas na política nacional.
Mas para entender por que São Paulo decidiu desafiar o poder central, precisamos voltar no tempo e reconstruir o clima de tensão e indignação que se formou na Primeira República e explodiu na chamada Revolução Constitucionalista.
Vamos contar essa história para que você possa compreender não apenas os fatos, mas as motivações humanas e políticas por trás deles.
A República Velha e o Pacto Café com Leite
No início do século XX, o Brasil vivia o período da República Velha (ou Primeira República). O poder estava concentrado nas oligarquias rurais, especialmente São Paulo (café) e Minas Gerais (leite), num acordo político informal conhecido como “política do café com leite”.
Essa política garantia alternância de presidentes entre mineiros e paulistas, excluindo outros estados e grupos sociais. Era um sistema marcado por coronelismo, voto de cabresto e manipulação eleitoral.
São Paulo, rico com o café, tinha enorme influência, controlando a economia e parte substancial da política federal. Mas tudo isso começou a ruir na crise de 1929.
A Crise de 1929 e o Fim do Acordo
A quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, afundou o preço internacional do café. A economia paulista sofreu fortemente.
Em 1930, deveria haver eleição para presidente. O então presidente Washington Luís (paulista) quebrou o acordo ao indicar outro paulista, Júlio Prestes, e não um mineiro. Minas se revoltou.
Formou-se então a Aliança Liberal, reunindo estados descontentes (Minas, Rio Grande do Sul, Paraíba) e lançando Getúlio Vargas como candidato.
As eleições foram tensas. Júlio Prestes venceu, mas a oposição denunciou fraude. Em outubro de 1930, após o assassinato de João Pessoa (vice de Getúlio) — usado como estopim político —, forças militares e civis derrubaram Washington Luís e impediram a posse de Júlio Prestes.
A Revolução de 1930
Getúlio Vargas assumiu o poder com o apoio dos militares. Mas não havia eleição nem Constituição para legitimar seu governo.
Ele governava como chefe de governo provisório, com poderes excepcionais.
Para São Paulo, isso foi um choque. Os paulistas haviam sido os mais poderosos na República Velha, mas agora estavam alijados do poder federal. Getúlio nomeou interventores “estrangeiros” (não-paulistas) para governar o estado.
O ressentimento cresceu. São Paulo se considerava injustiçado e humilhado. Mas havia algo ainda mais profundo: a luta por legalidade e constitucionalidade.
A Insatisfação Paulista
Durante 1931, a tensão política aumentou. O governo federal dissolveu assembleias estaduais e municipais, impôs censura à imprensa e perseguiu adversários.
Os paulistas se mobilizaram em torno de um lema poderoso: “Queremos uma Constituição!”.
Partidos adversários na República Velha — o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Democrático (PD) — se uniram na Frente Única Paulista.
As universidades, clubes, associações de classe e até jornais formaram um movimento massivo. Em 1932, São Paulo fervilhava de comícios e manifestações. A cidade de São Paulo, especialmente, virou um caldeirão de agitação política.
O Estopim – A Morte dos MMDC
Em 23 de maio de 1932, uma manifestação estudantil tentou invadir a sede da Legião Revolucionária, um grupo getulista.
A polícia abriu fogo. Quatro jovens foram mortos: Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo.
As iniciais deles formaram a sigla MMDC, que se tornaria símbolo e sigla de sociedades secretas de recrutamento. A morte dos estudantes inflamou a opinião pública.
Depois desse dia, a revolta virou questão de honra para muitos paulistas.
O Plano de Levante
Lideranças civis e militares de São Paulo passaram a planejar abertamente uma insurreição. O objetivo declarado: forçar Vargas a convocar eleições para uma Assembleia Constituinte.
Havia um plano para coordenar levantes em outros estados — especialmente Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Mato Grosso. A ideia era criar uma frente ampla para derrubar o governo provisório ou obrigá-lo a negociar.
Mas na hora decisiva, esses estados hesitaram ou mantiveram lealdade a Vargas. São Paulo ficaria praticamente sozinho.
A Revolução Começa – 9 de Julho de 1932
Na madrugada de 9 de julho, tropas paulistas saíram de seus quartéis e tomaram pontos estratégicos em São Paulo. Civis armados se juntaram. Voluntários se apresentaram em massa nos batalhões. A revolta começara.
O governador Pedro de Toledo foi aclamado líder civil do movimento — na prática, um governador constitucionalista.
Os paulistas organizaram rapidamente um exército de cerca de 35 mil homens. Muitos eram civis sem formação militar. Houve uma onda de patriotismo local. Jovens, senhores, estudantes, operários — todos queriam lutar.
A Mobilização Paulista
São Paulo viveu uma mobilização sem precedentes. A indústria paulista foi colocada a serviço da guerra. Fábricas de automóveis adaptaram linhas para produzir armas, peças de canhão e munições. Fundições improvisaram granadas e morteiros.
Mulheres costuravam fardas e uniformes. As escolas viraram quartéis. Campanhas de arrecadação conseguiram ouro, joias e dinheiro para financiar a luta. O slogan “Ouro para o bem de São Paulo” mobilizou famílias inteiras.
As tropas foram divididas em frentes: Vale do Paraíba (contra o Rio de Janeiro), Sul de Minas, Mato Grosso, Paraná e o litoral. Mas o exército federal era muito maior, mais bem treinado e contava com apoio de quase todos os estados.
As Batalhas e o Cerco
A guerra se arrastou por quase três meses. Os paulistas tentaram tomar o Sul de Minas para abrir caminho até Belo Horizonte e forçar os mineiros a aderirem. Mas enfrentaram forte resistência federal. As batalhas em Passa Quatro e Cruzeiro foram especialmente sangrentas.
No Vale do Paraíba, as tropas federais avançaram lentamente, mas com segurança. No oeste paulista, os federalistas vieram de Mato Grosso. Houve combates importantes em cidades como Bauru, Presidente Epitácio e Itapetininga.
O litoral foi bloqueado pela marinha federal. São Paulo ficou isolado. Sem apoio externo, sem armas pesadas e enfrentando um cerco econômico e militar, a resistência foi se desgastando.
A Rendição
Em setembro de 1932, São Paulo estava exausto. A cidade sofria com racionamento de comida e energia. O moral da tropa caía.
Pedro de Toledo e os líderes militares entenderam que não havia mais como resistir. Em 2 de outubro de 1932, São Paulo assinou a rendição. As tropas federais entraram pacificamente na capital.
Foi o fim do sonho de uma revolução vitoriosa.
As Perdas e os Números
A Revolução Constitucionalista foi o maior conflito civil do Brasil no século XX. Estima-se que entre 600 e 2.000 pessoas morreram, entre soldados, voluntários e civis.
Mais de 100 mil homens chegaram a ser mobilizados de ambos os lados. São Paulo teve feridos, mutilados, famílias destruídas. Muitos pracinhas constitucionalistas foram presos e deportados para o Norte e Nordeste.
As Consequências
Embora militarmente derrotada, a Revolução Constitucionalista teve efeitos políticos profundos.
Getúlio Vargas entendeu a força da reivindicação. Em 1933, convocou eleições para a Assembleia Constituinte. Em 1934, o Brasil promulgou uma nova Constituição. Era uma vitória parcial para os paulistas. Eles não haviam conseguido derrotar Vargas, mas forçaram o governo a aceitar uma Constituição.
A participação paulista na Constituinte também foi relevante: vários dos líderes derrotados em 1932 voltaram como deputados constituintes.
O Legado Cultural e o Feriado de 9 de Julho
Em São Paulo, a memória da Revolução de 1932 virou motivo de orgulho e identidade. O 9 de Julho foi transformado no feriado estadual mais importante. Desde 1997, é oficialmente data cívica estadual.
Ele não celebra uma vitória militar, mas o ideal de luta por uma Constituição.
O Obelisco do Ibirapuera, em São Paulo, é o maior monumento funerário do Brasil e guarda os restos mortais dos heróis de 1932 — inclusive dos MMDC.
Todos os anos, desfiles, eventos e cerimônias lembram o sacrifício dos paulistas. Em escolas paulistas, esse episódio ainda é estudado como uma das principais manifestações do espírito cívico do estado.
As Lições Históricas
A Revolução Constitucionalista foi uma tragédia, mas também um marco. Mostrou o limite do poder autoritário e a necessidade de legitimidade constitucional.
Foi um conflito desigual: um estado contra quase todo o país. Mas sua força simbólica obrigou o governo central a conceder o que antes negava: a convocação de uma Constituinte. Em vez de apagar a memória da derrota, São Paulo a transformou em símbolo de civismo.
A Memória no Brasil
Fora de São Paulo, a Revolução de 1932 é lembrada de forma mais ambígua. Em outros estados, muitas vezes foi vista como tentativa separatista ou elitista. Afinal, São Paulo queria recuperar o poder perdido na República Velha.
Mas a reivindicação central — uma Constituição — era nacional. Em última análise, todos se beneficiaram do resultado. Por isso, historiadores hoje costumam dizer que 1932 foi uma derrota militar, mas uma vitória política.
A Revolução Constitucionalista de 1932 foi um movimento que ajudou a consolidar o ideal de governo constitucional no Brasil.
Com todas as suas contradições — elites cafeicultoras buscando recuperar influência, mas também estudantes, operários e intelectuais defendendo o Estado de Direito —, ela permanece viva na memória brasileira como um episódio em que civis pegaram em armas para exigir “Queremos uma Constituição”.
Por isso, 9 de Julho é mais que um feriado: é um lembrete de que a legalidade não é um presente concedido por governantes, mas uma conquista que exige luta e sacrifício.
E essa lição continua atual.

