A Revolta da Cabanagem (1835–1840): O Levante Popular que Ensanguentou o Norte do Brasil

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Imagine um povo empobrecido, sem voz política, vivendo em cabanas de palha à beira dos rios da Amazônia. Agora imagine esse povo cansado de ser explorado, pegando em armas e tomando o poder de uma província inteira. Essa é a história da Cabanagem, uma das revoltas populares mais intensas e sangrentas da história do Brasil, que aconteceu na então Província do Grão-Pará, entre 1835 e 1840.

Diferente de outras revoltas conduzidas por elites políticas, a Cabanagem foi protagonizada por índios, mestiços, negros, ribeirinhos e caboclos. O nome vem das “cabanas” — moradias simples onde vivia a maior parte da população pobre da região.

A seguir, você conhecerá as causas, líderes, batalhas, consequências e o legado dessa revolta esquecida por muitos, mas essencial para entender a formação do Brasil.

O Brasil regencial e a exclusão da Amazônia

Após a abdicação de Dom Pedro I em 1831, o país mergulhou num período de instabilidade política: o Período Regencial. Sem um imperador maior de idade, o Brasil passou a ser governado por regentes — o que gerou inúmeras disputas regionais, principalmente pela forma centralizadora como o poder era exercido.

No norte, o Grão-Pará — que compreendia a atual região do Pará e partes do Amapá, Amazonas e Tocantins — era praticamente uma colônia dentro do Império. A província havia se integrado forçadamente ao Brasil em 1823, após resistência à independência, e nunca teve acesso efetivo à cidadania ou à vida política nacional.

A elite paraense — formada por comerciantes, militares e grandes proprietários — concentrava o poder. Já a população majoritária, formada por indígenas, mestiços, negros e pobres urbanos, vivia em condições miseráveis, sem representação política, oprimida pela Guarda Nacional e pelas autoridades locais.

Essa desigualdade latente preparava o terreno para a revolta.

As causas imediatas: crise, violência e injustiça

Diversos fatores contribuíram para o acirramento das tensões:

  • Desigualdade extrema: A elite controlava a política, a economia e o exército, enquanto o povo vivia à margem de tudo.
  • Fome e epidemias: Nos anos anteriores à revolta, a província enfrentou crises alimentares, surtos de varíola e malária, e desemprego em massa.
  • Violência institucional: A repressão da Guarda Nacional era brutal. Prisões arbitrárias, espancamentos e abusos eram comuns.
  • Ausência de autonomia provincial: A nomeação de presidentes de província pelo poder central gerava revolta. Em 1833, o governo nomeou o presidente Sousa Lobo, rejeitado por amplos setores da sociedade local.

O acúmulo dessas condições fez explodir o movimento em 1835.

O início da Revolta da Cabanagem

A revolta começou em 6 de janeiro de 1835, na cidade de Belém, capital da província. Um grupo de cabanos armados, apoiados por simpatizantes da elite liberal dissidente, invadiu a cidade, matou o presidente Sousa Lobo e tomou o controle do governo provincial.

Pela primeira vez na história do Brasil, rebeldes populares tomavam o poder de uma província inteira, estabelecendo um governo revolucionário liderado por dois nomes fundamentais: Félix Clemente Malcher e Francisco Vinagre.

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O movimento contava com apoio tanto de liberais urbanos quanto das camadas populares — mas essa aliança duraria pouco.

Os líderes da Cabanagem

Félix Malcher

Militar e fazendeiro local, foi o primeiro presidente do governo cabano. Sua liderança tentou conciliar a revolta popular com os interesses da elite — o que desagradou os radicais. Malcher hesitou em romper com o Império, o que levou à sua queda e execução por setores mais radicais da revolta.

Francisco Vinagre

Aliado de Malcher, assumiu a presidência após sua morte, mas também tentou conter os excessos da revolta. Acabou sendo pressionado a renunciar pelos radicais.

Eduardo Angelim

Foi o líder mais simbólico da Cabanagem. Filho de um pequeno comerciante, representava a ala mais radical. Defendia a ruptura com o Império e o poder popular. Assumiu a presidência da província em 1835, e governou Belém até ser expulso por forças imperiais.

A guerra civil no Pará

Após as primeiras vitórias, os cabanos enfrentaram a reação do governo imperial. Tropas foram enviadas do Rio de Janeiro com o objetivo de retomar Belém e restaurar a ordem.

Em agosto de 1835, as forças imperiais reconquistaram Belém, expulsando Angelim e os rebeldes, que recuaram para o interior da província.

Mas a revolta estava longe de terminar.

Durante os cinco anos seguintes, o Grão-Pará viveu uma verdadeira guerra civil. Grupos cabanos continuaram a lutar no interior, organizando guerrilhas e atacando vilarejos, quartéis e comboios imperiais.

Alguns episódios marcantes:

  • Massacre de Bragança: centenas de pessoas foram mortas após a retomada da vila pelas tropas do Império.
  • Guerrilhas nos rios Tocantins, Tapajós e Amazonas: combates em igarapés, aldeias e pequenas comunidades.
  • Alianças com indígenas e quilombolas: muitos grupos de resistência se fortaleceram com o apoio de comunidades tradicionais da floresta.

A repressão imperial

A resposta do Império foi brutal. Com o pretexto de restaurar a ordem, as tropas imperiais usaram todos os meios disponíveis:

  • Execuções públicas em praças e mercados.
  • Queima de cabanas, plantações e povoados.
  • Prisões em massa, inclusive de mulheres, idosos e crianças.
  • Transporte forçado de prisioneiros para outras províncias.

Calcula-se que, ao final da revolta, mais de 30 mil pessoas tenham sido mortas — cerca de 20% da população da província do Grão-Pará. Foi uma das maiores tragédias humanas da história do Brasil.

O fim da revolta

A resistência dos cabanos se manteve até 1840, quando os últimos grupos foram vencidos nas selvas do Amazonas e do Tocantins. Eduardo Angelim, capturado, foi preso e deportado para Fortaleza.

A revolta havia terminado, mas o sangue derramado manchou por décadas a memória da região.

Por que a Cabanagem é diferente?

Enquanto outras revoltas do período regencial — como a Farroupilha e a Sabinada — foram lideradas por setores médios e altos da sociedade, a Cabanagem foi uma revolta popular autêntica.

Ela foi conduzida, em sua essência, por caboclos, indígenas, negros libertos e trabalhadores pobres. Mesmo tendo contado com apoio de setores da elite liberal no início, foi o povo quem a sustentou até o fim.

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Essa característica a torna única e profundamente simbólica na história do Brasil.

Impactos políticos da Cabanagem

A repressão à Cabanagem forçou o Império a adotar algumas reformas para evitar novas revoltas semelhantes:

  • Criação de novos mecanismos de controle militar e administrativo nas províncias.
  • Aumento da presença do Exército Nacional no Norte e no Centro-Oeste.
  • Fortalecimento do autoritarismo regencial, o que levou ao enfraquecimento das liberdades provinciais.

Mas o legado mais importante foi o alerta: sem participação popular, o projeto de nação brasileira seria frágil e desigual.

Legado cultural e histórico

Durante muito tempo, a Cabanagem foi ignorada pela história oficial. Não havia estátuas, nem livros escolares, nem homenagens públicas. Era uma revolta de pobres, esquecida como outras histórias do Brasil profundo.

Nas últimas décadas, no entanto, movimentos sociais, historiadores e artistas passaram a recuperar essa memória:

  • Em Belém, há hoje o Memorial da Cabanagem, que homenageia os mortos.
  • Eduardo Angelim é nome de ruas, escolas e avenidas.
  • A revolta passou a ser estudada nas escolas paraenses como símbolo de resistência.
MEMORIAL DA CABANAGEM EM BELÉM

Curiosidades sobre a Cabanagem

  • Angelim tinha apenas 26 anos quando liderou o governo cabano em Belém.
  • A cidade de Belém foi dominada por forças populares por quase 9 meses — algo raro na história do Brasil.
  • Muitos dos mortos na repressão foram enterrados em valas comuns, sem registro, o que dificulta saber o número exato de vítimas.
  • O termo “cabano” era pejorativo, mas foi ressignificado como símbolo de luta.
  • Algumas comunidades ribeirinhas ainda mantêm lendas e memórias orais sobre heróis cabanos, especialmente no Baixo Amazonas.

A Cabanagem no Brasil de hoje

A Cabanagem é um lembrete de que o povo brasileiro sempre lutou por dignidade — mesmo nas condições mais adversas. É um alerta contra a desigualdade, o autoritarismo e o apagamento das vozes do Norte e do interior do país.

Também é um chamado à valorização da história regional, da memória das lutas populares e da diversidade que constrói o Brasil real.

Mais do que um levante do passado, a Cabanagem é parte da identidade amazônida, da resistência cabocla e da história dos que foram silenciados por séculos — mas nunca deixaram de lutar.

A Revolta da Cabanagem não foi apenas um episódio sangrento — foi uma das primeiras tentativas concretas de um povo oprimido de tomar as rédeas de seu destino. Liderados por figuras como Eduardo Angelim, Félix Malcher e Francisco Vinagre, os cabanos provaram que o Brasil profundo — indígena, negro, caboclo e ribeirinho — também tem voz, história e coragem.

Se a repressão foi cruel, a memória resiste. E cada vez que lembramos da Cabanagem, reafirmamos que a justiça social, a igualdade e a dignidade popular devem ser os pilares de qualquer projeto de país.

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