Entre os pampas verdes e os ventos frios do Rio Grande do Sul, ecoaram, por quase uma década, os tambores de guerra. Não era uma invasão estrangeira, nem um levante pontual — era a Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha.
De 1835 a 1845, gaúchos pegaram em armas contra o governo imperial brasileiro, num dos conflitos internos mais longos e emblemáticos do país.
Mas o que levou pecuaristas, estancieiros e militares a desafiar o Império? O que estava em jogo nessa guerra? E por que, mesmo depois de tanto sangue derramado, ela ainda é lembrada com orgulho e emoção no sul do Brasil?
Vamos entender tudo isso, capítulo a capítulo.
O Brasil em Ebulição
O início do século XIX foi turbulento para o Brasil. Após a Independência em 1822, o jovem Império enfrentava instabilidade política e econômica.
Dom Pedro I abdicou em 1831, deixando o trono para seu filho de apenas cinco anos. Iniciava-se o Período Regencial (1831–1840), uma fase marcada por revoltas em várias províncias, como a Cabanagem (PA), Sabinada (BA) e Balaiada (MA).
No sul, a situação também era tensa — mas por razões específicas.
O Sul Produtor e Esquecido
O Rio Grande do Sul era uma província estratégica, com fronteiras extensas com o Uruguai e a Argentina, e uma economia voltada principalmente à pecuária e à produção de charque (carne salgada e seca).
O charque gaúcho abastecia grande parte do país e os mercados do Exército, mas enfrentava concorrência desleal do charque do Uruguai e da Argentina, que entrava no Brasil com taxas mais baixas.
Os produtores gaúchos se sentiam explorados e ignorados pela política econômica do Império.
Além disso, havia insatisfação com a cobrança de altos impostos, a centralização política no Rio de Janeiro e a nomeação de governadores provinciais sem representatividade local.
Os Ideais e os Farrapos
Em meio a essa insatisfação, cresceu um movimento liderado por estancieiros, militares e liberais republicanos, defendendo maior autonomia para as províncias.
Muitos desses líderes eram influenciados pelas ideias da Revolução Francesa e pelos movimentos de independência da América Hispânica.
Passaram a ser chamados de “farrapos” — termo inicialmente pejorativo (como “maltrapilhos”), mas que foi ressignificado com orgulho.
Entre os principais líderes estavam:
- Bento Gonçalves, coronel do Exército e figura central da revolta.
- Giuseppe Garibaldi, aventureiro e idealista italiano, que se juntaria à luta.
- David Canabarro, militar experiente.
- Antônio de Souza Netto, responsável pela proclamação da República Rio-Grandense.
A Revolta Começa (1835)
No dia 20 de setembro de 1835, os rebeldes marcharam sobre a cidade de Porto Alegre, capital da província.
O presidente (governador) da província, Antônio Rodrigues Fernandes Braga, fugiu. Os farrapos tomaram o controle.
Era o início oficial da Revolução Farroupilha.
Durante os primeiros anos, os farrapos obtiveram várias vitórias. Controlaram boa parte da província e organizaram um governo paralelo, com forte apoio popular nas áreas rurais.
A Proclamação da República Rio-Grandense
Em 11 de setembro de 1836, após vencer as forças imperiais na Batalha do Seival, o general Antônio de Souza Netto proclamou a República Rio-Grandense, com capital em Piratini.
Era um passo ousado: não se tratava mais de exigir autonomia — mas de fundar um país independente.
Bento Gonçalves foi nomeado presidente, embora estivesse preso em Porto Alegre na época (seria libertado posteriormente).
A Guerra no Lombo do Cavalo
A Guerra dos Farrapos não foi uma guerra convencional. Era uma luta de guerrilha, emboscadas e mobilidade rápida, típica dos pampas.
Os farrapos, embora inferiores em número, conheciam o terreno e usavam cavalaria leve para surpreender os imperiais. Usavam roupas simples, muitas vezes improvisadas, e levavam consigo mate, armas rústicas e determinação.
Foi nesse cenário que se destacou um estrangeiro: Giuseppe Garibaldi.
Ele chegou ao Brasil em 1836 e uniu-se aos farroupilhas. Foi fundamental nas campanhas no litoral, liderando ações navais e ajudando a proclamar a República Juliana em Santa Catarina, em 1839 — mais um ato de rebeldia republicana.
A República Juliana e a Derrota no Sul
A República Juliana foi proclamada em Laguna (SC), como uma extensão da luta farroupilha.
Mas durou pouco. Tropas imperiais reagiram com força, retomaram o território e derrotaram Garibaldi e os rebeldes.
A perda foi dura, e os farroupilhas recuaram para o Rio Grande do Sul. Mesmo assim, a ideia de uma república independente ainda ganhava força nos pampas.
A Vida nas Terras em Conflito
Enquanto a guerra se arrastava, a vida no campo era dura.
Propriedades eram saqueadas, cidades mudavam de controle, e a população civil pagava um alto preço.
Muitos escravizados foram libertos pelos farrapos sob a promessa de lutar na guerra. Eles formaram os “lanceiros negros”, batalhões de ex-escravizados que demonstraram coragem em diversos combates.
Infelizmente, muitos deles seriam vítimas de traição mais adiante, como veremos.
O Império Reage
Ao longo dos anos, o Império brasileiro tentou sufocar a revolta com sucessivas campanhas militares.
Foram enviados generais como Barbacena, Caxias e Canavarro para combater os farrapos.
As batalhas se intensificaram, e o Império passou a adotar uma tática de contenção e desgaste.
Ao mesmo tempo, o jovem Dom Pedro II, que assumiu o trono em 1840 aos 14 anos, buscava soluções conciliatórias.
A Virada e o Fim da Guerra
A partir de 1843, a resistência farrapa começou a enfraquecer.
A economia da região estava devastada. A população já sofria há anos com os efeitos da guerra. Muitos líderes começaram a repensar seus objetivos.
O Império, por sua vez, adotou uma estratégia de anistia e negociação, liderada pelo então Duque de Caxias (Luís Alves de Lima e Silva).
Em 1º de março de 1845, foi assinado o Tratado de Ponche Verde, que pôs fim à guerra.
Os Termos do Acordo
O acordo foi generoso com os farrapos. Entre os principais pontos:
- Os oficiais seriam anistiados e poderiam integrar o Exército imperial.
- A libertação dos escravizados que lutaram nas tropas farrapas seria reconhecida.
- Os impostos sobre o charque seriam reduzidos.
- A província teria mais autonomia administrativa.
Apesar de não conquistar a independência, os farrapos encerraram a guerra com alguma dignidade e muitas de suas demandas parcialmente atendidas.
A Traição aos Lanceiros Negros
Um dos episódios mais trágicos e controversos foi o Massacre de Porongos, ocorrido em 1844.
Segundo relatos, os lanceiros negros — soldados libertos — foram desarmados e massacrados por tropas imperiais com o suposto aval de parte da liderança farrapa, como David Canabarro.
Há controvérsias entre os historiadores sobre o grau de responsabilidade dos líderes, mas o episódio é visto como uma traição brutal aos que mais sacrificaram na luta.
O Legado da Revolução Farroupilha
A Guerra dos Farrapos deixou marcas profundas.
No campo político, contribuiu para a construção da identidade federalista e para o debate sobre autonomia das províncias, que viria a influenciar o futuro do federalismo na República.
Culturalmente, virou mito fundador do Rio Grande do Sul. A data de início da guerra — 20 de setembro — é celebrada com orgulho como o Dia do Gaúcho, com desfiles, cavalgadas, acampamentos e festas tradicionais.
A figura do gaúcho livre, valente, montado no cavalo, virou símbolo de identidade regional.
Farrapos ou Heróis?
Os farrapos foram chamados de separatistas, traidores, aventureiros. Mas também de patriotas, visionários e defensores da liberdade.
Hoje, a Revolução Farroupilha é estudada sob múltiplas perspectivas. Não foi apenas uma guerra por impostos, mas um grito de autonomia diante de um império centralizador.
Também revelou contradições: uma elite que lutava por liberdade, mas usava mão de obra escravizada. E que, ao final, deixou para trás os que mais lutaram.
A Cultura Gaúcha Pós-Guerra
Após o conflito, o Rio Grande do Sul passou a valorizar ainda mais suas tradições, reforçando a figura do gaúcho campeiro, com seus valores de honra, bravura, trabalho e liberdade.
A memória da guerra se transformou em folclore, poesia, música e tradição oral.
No século XX, surgiram os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), que preservam danças, roupas típicas, culinária e histórias da Revolução.

O hino do Rio Grande do Sul, por exemplo, é uma homenagem direta aos ideais farroupilhas:
“Sirvam nossas façanhas / De modelo a toda Terra.”
A Guerra dos Farrapos foi mais do que uma revolta regional. Foi uma das primeiras e mais longas tentativas de exigir autonomia, respeito e justiça fiscal em um Brasil que ainda se formava.
Seus líderes não conseguiram criar uma república independente, mas deixaram um legado de resistência, identidade e debate político.
E mesmo que tenha sido vencida militarmente, a Revolução Farroupilha venceu na memória — e isso, talvez, seja a maior de todas as vitórias.
Porque um povo que se lembra de sua história nunca se rende.

